Missão (Im)possível? A necessidade de consolidar a democracia e unir os EUA

Desde a sua concretização em Novembro que as eleições presidenciais norte-americanas se tornaram uma constante na esfera política, especialmente no âmbito do debate, sendo provavelmente um dos acontecimentos mais importantes de 2020, sem menosprezar o contexto de pandemia em que vivemos. Na verdade, ambos estão interligados em muitos aspectos.

A celeuma provocada por Donald Trump após ter sido derrotado por Joe Biden nas eleições, com a alegação de fraude eleitoral, teve consequências muito graves, podendo ser vista como a causa para o que aconteceu nos meses subsequentes, como, por exemplo, a invasão ao Capitólio a 6 de Janeiro de 2021. Veja-se, ainda, que esta mesma alegação não teve como base quaisquer fundamentos, tendo sido rejeitada pelos tribunais de diversos estados norte-americanos, após recontagem de votos em alguns deles.

O episódio que teve lugar no dia 6 de Janeiro de 2021 não resultou apenas da atitude do 45º Presidente dos Estados Unidos das América após a vitória do ticket democrático, mas de quatro anos de incitação ao ódio, declarações falsas e mentiras ininterruptas nos discursos de Donald Trump que conquistaram uma parte significativa da população americana. O mais preocupante ainda perante este cenário é que algumas sondagens mostram que cerca de 45% dos seus apoiantes estiveram de acordo com a invasão do Capitólio e a manifestação junto ao mesmo (1).

O facto é que ninguém imaginaria que uma sessão conjunta para confirmar a vitória do Presidente Eleito para a presidência que, em regra, não demora mais do que uma hora teria uma duração de cerca de catorze horas, pela sua suspensão, devido à entrada violenta de dezenas apoiantes de Donald Trump no Capitólio, com o objectivo de criar o caos e tentar alterar o resultado incontestável das eleições, cujas objecções por parte de diversos senadores estavam a ser apresentadas e discutidas na sessão conjunta que procurava certificar os resultados.

América a ferro e fogo.

Fonte da Imagem: BBC.

O dia 6 de Janeiro teve quatro momentos-chave que devem ser cuidadosamente analisados, de forma a entender o que estará verdadeiramente em causa quando se afirma que isto foi um teste à politica doméstica do país, sendo que os acontecimentos desse mesmo dia trazem à tona as fragilidades da democracia e mesmo dos Estados Unidos, causando por si só um problema a nível doméstico e podendo ter efeitos também a nível da politica internacional.

Num primeiro momento, é fundamental ter em conta a declaração de Mike Pence apresentada antes do início da Sessão Conjunta, onde este afirma que não se pode subjugar às exigências de derrubar os resultados das eleições de Novembro, que foram marcadas por “alegações significativas de irregularidades na votação e inúmeros casos de funcionários a anular a lei eleitoral a nível estatal” (2), que põe em causa a integridade dessa mesma eleição.

O 48º Vice-Presidente dos Estados Unidos da América sublinhou nessa mesma declaração o facto de caber ao povo norte-americano a escolha do seu líder e como tal este também tem o direito de exigir eleições livres e justas, tendo como base a lei, e por isso, podem ainda requerer uma investigação relativamente a uma possível má conduta eleitoral.

Deste modo, Mike Pence assume a responsabilidade de presidir a sessão conjunta, garantindo que as objecções serão ouvidas e as provas apresentadas ao Congresso e os representantes eleitos pelo povo americano estarão encarregues de tomar uma decisão quanto às mesmas.

No que diz respeito à sua possível intervenção directa na confirmação do Presidente Eleito, na sua óptica, dos dois pontos de vista apresentados na tomada de uma decisão final referente à contagem dos votos, após a leitura atenta da Constituição, das leis e a história dos EUA, ele não se deve nem aproveitar do facto de ser Vice-Presidente para aceitar ou rejeitar votos eleitorais unilateralmente nem os votos eleitorais jamais deveriam ser contestados numa sessão conjunta do Congresso.

Para ele, a presidência pertence unicamente à população, sendo por isso da responsabilidade dos representantes eleitos por ela resolver as disputas por meio de um processo democrático, baseando-se no denominado Acto de Contagem Eleitoral (Electoral Count Act).

Portanto, o seu dever, enquanto Vice-Presidente, é o de “apoiar e defender a Constituição”, sendo que a mesma o limita no que toca à autoridade unilateral que foi mencionada anteriormente. Cabe, então, ao Congresso tratar das “controvérsias eleitorais quando estas surgem durante a contagem do voto do Colégio Eleitoral” (3).

Tendo isto em conta, Mike Pence assume que ele deve apenas dirigir a sessão e ter em conta todas as objecções pronunciadas pelos senadores e membros da Câmara dos Representantes, contando os votos do colégio eleitoral.

Após a divulgação desta carta, surge então um tweet de Donald Trump, acusando o Vice-Presidente de “não ter a coragem de fazer o que deveria ter sido feito para proteger o seu país e a sua Constituição” (4), recusando a acção do Congresso.

O segundo momento é marcado pelo motim que se deu nas imediações e no interior do Capitólio e os eventos inerentes ao mesmo, sendo um acontecimento que merece especial atenção.

Neste sentido, em primeiro lugar, é necessário compreender que o mesmo se deu depois de Donald Trump ter incitado ao ódio, através da sua conta do Twitter, que veio a ser eliminada pela própria rede social, referindo constantemente a existência de fraude eleitoral e de uma maneira ou de outra dando razões para que os seus apoiantes se sentissem apoiados para tomar qualquer iniciativa violenta e interferir na decisão que  seria tomada na sessão conjunta do Congresso, “invadindo as câmaras de debate e entrando em confronto com a policia” (5), agredindo a forças policiais, estando muitos deles armados.

Duas das cenas que mais se destacaram neste deplorável acontecimento foi o roubo do púlpito de Nancy Pelosi por um dos invasores e a falta de senso comum de outro que se sentou na cadeira da Speaker da Câmara dos Representantes e pôs os pés sobre a mesa, ambos já detidos pela polícia de Washington DC.

Todavia não se tratou apenas um ataque a um edifício ou à sessão conjunta onde Joe Biden foi, mais tarde, reconhecido como Presidente dos Estados Unidos da América, indo muito além disso, representando um ataque à democracia. Veja-se que o alvo dos apoiantes de Donald Trump era Mike Pence, então Vice-Presidente dos EUA, cantando-se por muitos deles por todo o Capitólio a frase: “Hang Mike Pence” (6).

O terceiro momento é a postura assumida por Donald Trump, ainda como Presidente dos EUA, que em vez de tentar chamar à razão os seus apoiantes, parece ter dado força às suas acções, reforçando a ideia de que existiria fraude eleitoral, embora em uma ocasião tivesse apelado à paz, mas num tom muito distante do que seria esperado numa situação destas.

Por fim, também os discursos de Mike Pence quando a sessão conjunta foi retomada e o discurso de Joe Biden, ambos a condenar a violência que marcara aquele dia revelam ser o quarto momento-chave.

Por um lado, o então Vice-Presidente condenou a violência a que se assistiu anteriormente, lamentando as mortes decorrentes desse evento e agradecendo às forças policiais que defenderam o Capitólio. Este ainda afirmou que a violência nunca ganha, a liberdade é que sim, sendo que o Capitólio continua a ser a casa das pessoas. Desta forma, segundo ele, a resiliência e força da nossa democracia ganhará, mesmo diante de violência e vandalismo.

Por outro lado, o actual Presidente dos EUA declarou que a democracia dos Estados Unidos se encontra sob “um ataque sem precedentes” (7), sublinhando o esforço das forças policiais na protecção dos representantes eleitos.

Na presente linha de raciocínio, Joe Biden deixa claro que o caos que se instalou no Capitólio não reflecte a verdadeira América, sendo os protagonistas deste ataque um pequeno grupo de extremistas que provocaram o caos e a desordem e, por isso, pede a Trump que faça um discurso em “national television” (8), cumprindo o juramento que fez quando se tornou Presidente dos EUA e defenda a Constituição, exigindo não só o fim do cerco no Capitólio, mas também da sua invasão, destruição e a apropriação dos gabinetes dos representantes eleitos pelo povo americano.

O 46º Presidente dos Estados Unidos referiu-se, então, a este momento como um “momento negro” que deve ser trabalhado não apenas agora, mas nos próximos quatro anos, defendendo a democracia e valores como os da honra, decência e respeito, pois estes representam os Estados Unidos como uma nação.

O dia 6 de Janeiro mostrou, para ele, como a democracia é frágil e que preservá-la requer que as pessoas envolvidas nessa tarefa tenham vontade, assim como os líderes devem ter coragem para fazer face a estas fragilidades e empenhados num “bem comum”, “assumindo um compromisso com esta nação” (9).                                            

O que se pode concluir dos eventos e dos discursos analisados, é que de facto as palavras do presidente têm muita força e podem provocar este tipo de actos, especialmente quando os seus apoiantes são movidos pelo ódio e pela mentira.

Quando uma sessão conjunta é interrompida da forma que é, com uma invasão de proporções inimagináveis, na qual cinco pessoas morreram, passa a ter-se absoluta certeza de que deixará de existir o conceito de transição pacífica de poder. Aliás, decorrente disso, foi votado pela Câmara dos Representantes um novo impeachment, através da 25ª emenda, algo que será avaliado pelo Senado após a tomada de posse por Joe Biden. Veja-se que Donald Trump será o primeiro presidente a enfrentar a possibilidade de um impeachment por duas vezes. De facto, Mitch McConnell já afirmou publicamente que o processo só será analisado pelo Senado após o fim do mandato de 45º Presidente dos EUA, o que torna ainda mais difícil a posição de Joe Biden/Kamala Harris.

As grandes questões que se põem diante deste impeachment é como é que Donald Trump reagirá, mesmo já tendo terminado o mandato, com o facto de nunca mais poder candidatar-se à presidência, algo que ele já havia referido várias vezes antes das eleições, e mais importante ainda, de como os apoiantes deste reagirão no futuro. Importa salientar que havia a possibilidade que no dia 16 fossem invadidos outros edifícios em vários Estados.  

Ainda que os últimos quatro anos e os acontecimentos de Janeiro possam vir a tomar o final de um ciclo e o início de outro, o futuro ainda está por definir e os próximos quatro anos serão cruciais.

Finalmente, é necessário analisar o que aconteceu no dia 20 de Janeiro, no qual Donald Trump fez o seu último discurso como Presidente e Joe Biden fez o seu primeiro discurso como 46º Presidente dos Estados Unidos da América.

Por um lado, Donald Trump, no seu discurso de despedida, vangloriou-se dos quatro anos que passou na Casa Branca, enaltecendo todas as suas decisões no que toca a diferentes assuntos, como é o caso da economia, o apoio aos veteranos e o desenvolvimento da vacina e o facto de ter alcançado um número histórico de votos populares. Desta forma, fecha um ciclo caracterizado por quatro anos tempestuosos e caracterizados pela prevalência da mentira.

Por outro lado, um novo ciclo abre-se quando, no mesmo dia, Joe Biden assume a presidência dos Estados Unidos da América, contando com a presença de Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama, notando-se a ausência de Jimmy Carter que, por motivos de saúde, não compareceu à tomada de posse. Nesta estava também presente Mike Pence, o anterior Vice-Presidente dos EUA, que fez questão de se apresentar na mesma. Importa salientar que, tendo em consideração o ataque ao Capitólio, de forma a reforçar a segurança de Joe Biden, Kamala Harris, entre outros, estiveram mais de vinte e cinco mil militares na operação.

No discurso inaugural de Joe Biden, este assinala que aquele é o “dia da América, o dia da democracia”, de “renovação e determinação” e acima de tudo a “vitória de uma causa, a da democracia” (10). Joe Biden, à semelhança do discurso do dia 6 de Janeiro, também sublinha o quão frágil e preciosa é a democracia.

Relembrando a violência sobre o Capitólio, no seu ponto de vista, a nação juntou-se indivisível a fim de “realizar a transferência pacífica de poder como temos feito por mais de dois séculos” (11). Neste sentido, o facto de haver desentendimentos nunca poderá levar a uma guerra total.

Num discurso bastante diferente de Donald Trump relativamente ao vírus, Joe Biden afirma que há muito a fazer, lembrando que “o vírus matou mais norte-americanos em um ano do que morreram durante toda a Segunda Grande Guerra” (12), levando a um nível de desemprego muito alto e ao encerramento de muitos negócios.

Perante uma sociedade marcada pelo aparecimento do extremismo político, supremacia branca, terrorismo doméstico e um racismo sistémico é necessário que a América se apoie no que Joe Biden denominou de “sonho de justiça” (13), que se combata os mesmos a fim de vencê-los e “restaurar a alma da América e assegurar o futuro da América” (14), pela união da nação. E é nesse contexto que Joe Biden se declara como o “presidente de todos os americanos” (15).

De forma a reforçar a necessidade de união, Joe Biden cita Santo Agostinho, afirmando que “um povo é uma multidão definida pelos objectos comuns do seu amor” (16), questionando-se de seguida acerca dos objectos comuns que o povo norte-americano ama e que o define, enumerando-os: “oportunidade, liberdade, segurança, respeito, honra e sim a verdade” (17).

Por fim, reforça o sentido da história dos Estados Unidos da América, afirmando que esta história é “de esperança e não de medo; de unidade, não divisão; de luz e não escuridão” (18), isto é, “uma história de decência e dignidade, amor e cura, grandeza e bondade” (19). Esta é a história que nos inspira e deve guiar os EUA em frente, tornando a América “[n]um farol para o mundo” (20).   

O que é possível concluir destes últimos acontecimentos é que os próximos quatro anos não serão fáceis e a Joe Biden, enquanto 46º Presidente dos EUA caberá uma das mais difíceis tarefas de sempre, a de unir um país claramente partido, enfrentar esta transição tumultuosa e resistir às dificuldades que ambas o atormentarão durante a sua administração. Terá, igualmente, de provar que a América será capaz de mostrar que passou no teste no que toca à primazia da democracia no país e continuará a guiar o mundo.


Nota: este artigo foi redigido sem o Novo Acordo Ortográfico.


A colaboradora do blog,

Barbara Monteiro


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(1) Informação obtida através de: https://www.economist.com/graphic-detail/2021/01/07/nearly-half-of-republicans-support-the-invasion-of-the-us-capitol

(2) Mike Pence’s letter, presented on January 6th, 2021. Consultada em: https://edition.cnn.com/2021/01/06/politics/pence-trump-electoral-college-letter/index.html

(3) Ibidem

(4) Com a eliminação do Twitter de Donald Trump não é possível visualizar o tweet, consultado em https://twitter.com/realDonaldTrump/status/1346900434540240897, sendo que se pode aceder ao tweet através do seguinte link https://www.newsobserver.com/news/politics-government/article248313445.html

(5) “Pro-Trump rioters storm US Capitol during vote on Biden election victory – video report”, consultado em: https://www.theguardian.com/us-news/video/2021/jan/07/pro-trump-rioters-storm-us-capitol-during-vote-on-bidens-election-victory-video-report

(6) Tradução: “Enforquem Mike Pence”

(7) Joe Biden’s Speech, January 7, 2020, consultado em: https://www.youtube.com/watch?v=0oYetl_k34A

(8) A tradução em português não é possível.

(9) Joe Biden Speech at January 6th, 2020, consultado em:  https://www.youtube.com/watch?v=0oYetl_k34A

(10) Discurso de Joe Biden a 20 de Janeiro de 2021, consultado em: https://au.news.yahoo.com/full-transcript-joe-bidens-inauguration-175723360.html

(11) Discurso de Joe Biden a 20 de Janeiro de 2021, consultado em: https://au.news.yahoo.com/full-transcript-joe-bidens-inauguration-175723360.html

(12) Discurso de Joe Biden a 20 de Janeiro de 2021, consultado em: https://au.news.yahoo.com/full-transcript-joe-bidens-inauguration-175723360.html

(13) Discurso de Joe Biden a 20 de Janeiro de 2021, consultado em: https://au.news.yahoo.com/full-transcript-joe-bidens-inauguration-175723360.html

(14) Discurso de Joe Biden a 20 de Janeiro de 2021, consultado em: https://au.news.yahoo.com/full-transcript-joe-bidens-inauguration-175723360.html

(15) Discurso de Joe Biden a 20 de Janeiro de 2021, consultado em: https://au.news.yahoo.com/full-transcript-joe-bidens-inauguration-175723360.html

(16) Discurso de Joe Biden a 20 de Janeiro de 2021, consultado em: https://au.news.yahoo.com/full-transcript-joe-bidens-inauguration-175723360.html

(17) Discurso de Joe Biden a 20 de Janeiro de 2021, consultado em: https://au.news.yahoo.com/full-transcript-joe-bidens-inauguration-175723360.html

(18)  Discurso de Joe Biden a 20 de Janeiro de 2021, consultado em: https://au.news.yahoo.com/full-transcript-joe-bidens-inauguration-175723360.html

(19) Discurso de Joe Biden a 20 de Janeiro de 2021, consultado em: https://au.news.yahoo.com/full-transcript-joe-bidens-inauguration-175723360.html

(20) Discurso de Joe Biden a 20 de Janeiro de 2021, consultado em: https://au.news.yahoo.com/full-transcript-joe-bidens-inauguration-175723360.html


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