Uma Reflexão Inacabada sobre as Fragilidades da Democracia Portuguesa
Acerca do estado da democracia em Portugal, são algumas as vezes em que nos perguntamos quais os problemas que minam estruturalmente as bases da democracia portuguesa. No dia 03 de fevereiro, a imprensa abria com destaques: Portugal perde denominação de democracia plena e volta a ser democracia com falhas (Público). Mas em que estado está a democracia em Portugal? Para abordar este tema, passamos a propor uma reflexão algo simples, sumária e inacabada, que partindo do aludido Democracy Index 2020 (1) da Intelligence Unit do The Economist, pretende seguir pela confrontação com a realidade empírica, nomeadamente com os sistemas de verificação típicos dos Estados de Direito Democrático Ocidentais e que idealizamos quando recorremos à acepção de democracia.
Fonte da Imagem:
Francisco Seco.
Global Index Democracy 2020.
Fonte da Imagem:
The Economist.
Comecemos por uma questão analítica:
qualquer classificação em Ciências Sociais peca por ser redutora de uma
realidade que se tem como multivariada, interdependente e complexa. Fruto do exposto,
os indicadores utilizados para formular índices, nomeadamente aquele de onde
parte a nossa reflexão, são orientados para responder a determinadas questões,
em detrimento de outras, conhecendo necessariamente um conjunto de
enviesamentos que resultam, entre outros, das variáveis consideráveis, da
mensurabilidade das mesmas e do contexto social e académico onde são
desenvolvidos, nomeadamente no que a uma visão neogramsciana (2) da sociedade diz respeito.
Retomando o título da notícia no
Público, apelamos à calma: a verdade é que 2019 tinha sido o primeiro ano em
que Portugal havia sido classificado como Democracia Plena e essa
classificação é obtida através de um valor acima de 8,00/10,00: ora Portugal
obtera 8,03 na classificação do The Economist, o que também não é,
dentro desta classificação, uma democracia plena confortável. O
relatório explica que a queda de 0,13 pontos na escala decimal (em 2020,
Portugal obteve 7,90) se prende essencialmente com três tópicos: (i) a
baixa participação política; (ii) a aprovação do novo regimento da
Assembleia da República, em agosto de 2020 e (iii) os contornos
duvidosos na nomeação do Presidente do Tribunal de Contas, quinta figura do
Estado Português.
Tendo em conta as deficiências
metodológicas (e não só) do processo apresentadas, passaríamos, de certa forma,
a dar atenção a alguns dos problemas indiciados, nomeadamente a um conjunto de
iniciativas legislativas com impacto direto na saúde da democracia – são,
no geral, diplomas com alterações cirúrgicas que cumulativamente acabam por
contribuir para uma menor plenitude democrática (3) no processo de decisão política, que passaremos a elaborar. Escolhemos três
diplomas distintos: a alteração do regimento da Assembleia da República de 2020 (4), a Lei
Orgânica n.º 1-A/2020 de 21 de agosto (5) e a Lei
n.º 64/2020 (6).
De uma forma geral, a primeira das
alterações refere-se àquilo a que António Costa Pinto referirá como uma
perda para a democracia Portuguesa (7):
a diminuição da regularidade dos debates com a presença de elementos do governo
na Assembleia da República (AR), amputando, pelo menos, num panorama simbólico
(esperamos que não mais do que isso) a centralidade da competência parlamentar
do acompanhamento e fiscalização do ramo executivo. No que diz respeito à Lei
Orgânica n.º 1-A/2020 de 21 de agosto, o diploma dificulta substancialmente o
processo pelo qual é possível um grupo de cidadãos independentes concorrerem às
eleições autárquicas e que provocou recentemente uma intervenção da Provedora
de Justiça (8), no
sentido do questionamento da constitucionalidade – mais do que uma questão
constitucional, está mais uma vez colocado em causa um princípio basilar e
histórico da organização política local em Portugal, que é anterior ao próprio
constitucionalismo oitocentista, e remete para as ideias de autogoverno
e de participação ativa. Por fim, o diploma que terminou na forma da Lei
n.º 64/2020, que diminui a frequência dos debates parlamentares de âmbito
europeu, e que envolveu um veto presidencial (9) e uma
reformulação do diploma inicialmente aprovado pela AR, que era mais incisivo
nos cortes apresentados. Como sabemos, desde o Tratado de Lisboa, que a União
Europeia olha para os Parlamentos Nacionais como órgãos de permanente apoio à
consolidação do projeto europeu. À semelhança do regulamento da Assembleia da
República, os dois diplomas foram aprovados pelo Bloco Central (PS-PSD). Efetivamente,
tratam-se de precedentes preocupantes, não só para o normal desenvolvimento das
competências de escrutínio, que residem na Assembleia da República e, de certo
modo, na sociedade civil, mas também na consagração de uma tendência de fechamento
do sistema sobre si mesmo.
O que está aqui em causa é, não só mas
também, a ideia do eixo central de competição no sistema (10),
que curiosamente é retomada por Pedro Nuno Santos num artigo (11) que
escreve, também no Público, ou por Paulo Portas no seu comentário televisivo semanal
– a transição de um eixo de uma clivagem principal esquerda-direita, como ao
que estamos habituados na tradição democrática nacional, para uma centralidade
da clivagem sistema-antissistema, passível através da progressiva concordância
das forças sistémicas e da ascensão de forças antissistémicas à direita do
espetro político tradicional. Este processo poderá ter implicações ainda
maiores na saúde da democracia portuguesa – se essa transição de eixo se
efetivar, o debate em cima da mesa é a própria democracia.
Esta nunca pretendeu ser uma reflexão terminada, mas sem dúvida um
início de conversa, remetendo para o facto de que a saúde da democracia conhecer
perigos que têm origem não só em forças que se assumem como antissistémicas e
que tanto têm sido referidas na Comunicação Social (12), mas
também em iniciativas de forças sistémicas e democráticas que consciente ou
inconscientemente atentam sobre a saúde
da democracia abrindo precedente à diminuição do escrutínio democrático, mas
também à desconsideração do debate político, das identidades ideológicas ou do
papel fulcral de uma oposição saudável.
O colaborador do blog,
Gonçalo Margato
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(1) Acesso disponível aqui: https://www.eiu.com/n/campaigns/democracy-index-2020/
(2) “Theory is always for someone
and for some
purpose” (Cox, 1981)
(3) Como
sabemos a definição de democracia é muito discutida, servindo esta
expressão – plenitude democrática – para descrever um estado idealizado
e perfeito de democracia.
(10) Jalali, C. (2017). Partidos e Sistemas Partidários.
Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos
(12) Aqui
fica um episódio do podcast Rua do Mundo, onde Cas Mude aborda esta
questão: https://podcasts.google.com/feed/aHR0cHM6Ly9hbmNob3IuZm0vcy8zOTVkOWQ5NC9wb2RjYXN0L3Jzcw/episode/MzRmN2UzMzUtZjkyZi00YWRhLWE4NWItOTUwOTg0ZmRkZDM4?sa=X&ved=0CA0QkfYCahcKEwigqJbpvoDvAhUAAAAAHQAAAAAQAQ
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