Solidariedade, Diálogo e Contrição: A Santíssima Trindade em visita ao Iraque

      No início do mês, entre 5 e 7 de março, teve lugar uma das visitas papais mais marcantes da história recente. Naquela que é a sua primeira viagem fora de Itália desde o início da pandemia, o Papa Francisco realizou também a primeira visita de um papa ao Iraque. No passado, João Paulo II e Bento XVI tentaram realizar esta visita, mas preocupações relativas à segurança na região levaram a que esta não tivesse efeito (1). Desta vez, as preocupações eram relativas ao agravamento da pandemia de COVID-19 no Iraque, mas nem assim foram suficientes para travar Francisco. 

 Em primeiro lugar, importa ter em conta as motivações que levaram o Papa Francisco a escolher o Iraque (para além de já ter sido convidado pelo Chefe de Estado em 2019), de entre as quais se destaca a solidariedade para com os fiéis no país, cujo número tem vindo a diminuir de forma exponencial. No final do regime de Sadam Hussein, em 2003, o país contava com cerca de 1.2 milhões de cristãos. Hoje, quase 20 anos mais tarde, apenas cerca de 250.000 fiéis persistem, compreendendo menos de 1% da população – num país onde cerca de 95% dos habitantes são muçulmanos (2). Esta diminuição é explicada pelas consequências da invasão liderada pelos EUA em 2003 e posterior ocupação, assim como pela presença do Estado Islâmico em algumas das regiões do norte do país, entre 2014 e 2017. As raízes do Cristianismo no Iraque remontam às primeiras décadas da religião, pelo que a visita do Pontífice ganha ainda mais importância, assim como o seu objetivo de encorajar e transmitir força aos fiéis (3), tratados muitas vezes pelo governo iraquiano como cidadãos de segunda-classe.

Para além disto, esta visita também pretende transmitir a ideia de que o Iraque é um país mais seguro, agora que os anos de conflito sectário chegaram ao fim, de modo a levar os cristãos iraquianos residentes no estrangeiro a regressarem ao seu país (4). Os líderes políticos do Iraque, que se encontraram também com Francisco, entenderam esta visita como sendo uma oportunidade de curar e de sarar os recém-terminados conflitos inter-religiosos no Iraque, assim como de demonstrar a estabilidade reinante no país (5), que há cerca de quatro anos se encontrava ocupado pelo Estado Islâmico em algumas regiões.

 Contudo, o momento mais importante da visita do Pontífice ao Iraque foi, sem dúvida, o seu encontro com o Grand Ayatollah Ali al-Sistani. Esta é uma figura extremamente marcante no Iraque desde o fim da invasão liderada pelos EUA, não só pelo seu papel como líder religioso, mas também pela sua influência a nível político: como por exemplo, mobilizou a população para participar nas eleições em 2005 e demonstrou oposição ao Estado Islâmico em 2014 (6). Apesar do Islão não ter uma figura de liderança como é o caso do Cristianismo, existem várias figuras com um papel semelhante ao do Papa Francisco. Neste sentido, o Grand Ayatollah al-Sistani é um dos mais influentes líderes islâmicos, sendo também o líder espiritual dos muçulmanos xiitas, não apenas no Iraque, mas também além-fronteiras. Este encontro entre os dois líderes é histórico, pois é a primeira vez que algo de semelhante tem lugar. Dado que al-Sistani raramente se encontra com figuras estrangeiras, vivendo como um eremita, este encontro ganha ainda mais importância (7), uma vez que é entendido como fundamental por ambas as partes.

Encontro entre al-Sistani e Francisco, o momento mais simbólico da viagem do Pontífice ao Iraque.

Fonte da Imagem: BBC - https://www.bbc.com/news/world-middle-east-56309779 

No centro do encontro entre estas duas figuras, está presente a ideia de que a religião não deve ser usada para servir a violência e a divisão, mas sim para fomentar a paz e a união. Ora, num país que nos últimos 20 anos, esteve dominado pelo conflito inter-religioso, e que é caraterizado pela diversidade religiosa, esta mensagem afigura-se bastante poderosa (8). Assim, o encontro entre os dois líderes religiosos pode ser visto como a viragem de uma página e o começo de um novo entendimento entre o Cristianismo e o Islamismo, marcado pelo diálogo, tolerância e entendimento entre as partes. Para além disto, os líderes condenaram a guerra, focando-se em questões como a pobreza, justiça social e dignidade humana (9).

Esta prática de aproximação e de aprofundamento das ligações ao Islão tem sido frequente durante o Pontificado de Francisco, ganhando mais destaque em anos recentes. Já em 2019, o Papa encontrou-se em Abu Dhabi com o Sheikh Ahmad al-Tayyeb, uma das figuras mais importantes dentro do Islamismo sunita, onde assinaram uma declaração conjunta que condena o uso da violência em nome da religião e promove uma cultura de respeito mútuo entre as minorias religiosas - tanto no Oriente, como no Ocidente (10). Também importa referir que durante a pandemia, em outubro, Francisco escreveu a encíclica “Fratelli Tutti” (traduzido, “Todos Irmãos”), que enfatiza a ideia de que o diálogo entre as partes pode promover a coexistência pacífica (11) – e não é por acaso que o Capítulo VIII desta encíclica se intitula “As Religiões ao Serviço da Fraternidade no Mundo”.

Para além dos motivos, já enunciados, subjacentes à visita do Papa Francisco ao Iraque, como a solidariedade para com os seus fiéis e a demonstração de diálogo entre partes diferentes, esta também pode ser entendida como um “ato de contrição” ou uma demonstração de arrependimento pelos horrores vivenciados no Iraque (12), algo nunca realizado até então por uma figura influente no Ocidente. No entender de Francisco, a vivência traumática iraquiana, marcada pelo conflito, necessita de ser consolada, pelo que “the pope traveled, in his own words, as a ‘penitent pilgrim’, seeking forgiveness for the sins of thos who brought ruin on Iraq” (13). Esta ideia é ainda mais importante se tivermos em conta que o Vaticano se opôs à invasão do Iraque em 2003, e que João Paulo II enviou uma comitiva a Washington para tentar que o Presidente George W. Bush travasse a invasão (14), receando que esta desencadeasse extremismo e instabilidade (como se verificou posteriormente).

Para finalizar, através desta visita conseguimos compreender o poder de influência que a Igreja, na forma do Papado, desempenha nas Relações Internacionais. Para além do papel histórico da Santa Sé como mediadora de conflitos e do seu papel jurídico como sujeito de Direito Internacional, hoje em dia é importante ter em conta o soft power que esta instituição (assim como as diferentes religiões) exerce. Esta ideia ganha um significado importante no encontro entre Francisco e al-Sistani, uma vez que são duas figuras de autoridade com milhões de seguidores; neste sentido, a mensagem transmitida aos fiéis é a de que, se os líderes se encontram e se respeitam, os fiéis também o poderão fazer (15). Assim, o poder simbólico e de influência desta visita reside na mensagem que é transmitida aos fiéis, através do exercício da diplomacia pública por parte de Francisco e al-Sistani. Para além disto, como referido, o ato de contrição subjacente à visita de Francisco, reconhecendo o sofrimento vivido pelos iraquianos nos últimos anos, contribui precisamente para este objetivo de aproximar religiões e de promover a tolerância.


O colaborador do blog,

Francisco Quina

 

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(1)   https://www.nytimes.com/2021/03/04/world/middleeast/pope-francis-iraq-explained.html

(2)   https://www.economist.com/middle-east-and-africa/2021/03/04/the-pope-is-heading-for-iraq-where-christians-remain-afraid

(3)   https://www.nytimes.com/2021/03/04/world/middleeast/pope-francis-iraq-explained.html

(4)   https://www.bbc.co.uk/sounds/play/p098v7l8 (minutos 1:15-5:07).

(5)   https://www.youtube.com/watch?v=VHhKBOm5n6E (minutos 14:37-15:50).

(6)   https://www.foreignaffairs.com/articles/iran/2021-03-12/penitent-pope

(7)   https://www.nytimes.com/2021/03/04/world/middleeast/pope-francis-iraq-explained.html

(8)   https://www.youtube.com/watch?v=VHhKBOm5n6E (minutos 5:52-6:50).

(9)   https://www.foreignaffairs.com/articles/iran/2021-03-12/penitent-pope

(10)           https://www.youtube.com/watch?v=VHhKBOm5n6E (minutos 21:42-22:16).

(11)           https://www.foreignaffairs.com/articles/iran/2021-03-12/penitent-pope

(12)           Ibidem.

(13)           Ibidem.

(14)           Ibidem.

(15)           https://www.youtube.com/watch?v=VHhKBOm5n6E (minutos 9:37-11:42).

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